A autenticidade de várias receitas conventuais portuguesas, conhecidas mundialmente por sua rica herança cultural e sabor inconfundível, tem sido questionada por especialistas e historiadores culinários. A polêmica ganhou força após o surgimento de novas pesquisas que indicam que alguns dos pratos tradicionais podem ter sido significativamente alterados ao longo dos séculos, levando a debates acalorados sobre o que realmente pode ser considerado “conventual”.
A culinária conventual portuguesa é caracterizada principalmente por doces e iguarias preparadas originalmente em conventos e mosteiros durante os séculos XVI e XVII. Entre as mais conhecidas estão o pastel de nata, o toucinho do céu, os ovos moles de Aveiro, e o pão de ló de Ovar. No entanto, com o passar do tempo, muitas dessas receitas foram adaptadas ou modificadas, seja por necessidades práticas, ingredientes disponíveis, ou simplesmente por modismos culinários.
A Pesquisa e os Questionamentos
Historiadores como Maria do Carmo Teixeira, da Universidade de Lisboa, destacam que várias receitas conventuais populares nos dias de hoje podem ter pouco a ver com as versões originais. “É evidente que o tempo trouxe modificações inevitáveis a essas receitas. Ingredientes antes raros e caros, como o açúcar, passaram a ser mais acessíveis, o que transformou completamente o sabor e a composição das iguarias”, afirma a professora.
O estudo realizado por Teixeira e sua equipe analisou manuscritos históricos, correspondências entre conventos e registros de compras de ingredientes, indicando que muitos dos doces tradicionais, em sua origem, utilizavam menos açúcar e ingredientes como mel e especiarias locais, além de técnicas de preparo que se perderam com o tempo. Além disso, alguns doces que atualmente são chamados de conventuais podem não ter sido criados dentro dos conventos, mas sim em casas aristocráticas que os popularizaram posteriormente.
As Transformações Culinárias ao Longo dos Séculos
Uma das principais transformações observadas foi no uso de ovos, principalmente nas claras e gemas, que são um dos ingredientes predominantes em muitos doces conventuais. Durante os séculos XVI e XVII, as claras de ovos eram utilizadas para engomar roupas nos conventos, e as gemas, muitas vezes, acabavam sendo utilizadas em doces. “Esse reaproveitamento das gemas foi a gênese de muitos doces conventuais”, explica o historiador gastronômico João Pereira.
Porém, segundo Pereira, a doçaria conventual moderna exagerou na quantidade de gemas, provavelmente por razões comerciais e de sabor. “Os ovos moles de Aveiro, por exemplo, em sua versão original eram muito menos açucarados e com menor quantidade de gemas do que vemos hoje. A versão atual foi ajustada ao paladar moderno, que prefere doces mais intensos”, acrescenta.
Além disso, os métodos de produção também mudaram drasticamente. A industrialização da doçaria, especialmente a partir do século XIX, trouxe maquinário e técnicas que tornaram o processo mais rápido e eficiente, mas, segundo especialistas, perdeu-se a essência do preparo artesanal que caracterizava as receitas conventuais.
A Reação da Igreja e dos Produtores
As irmandades religiosas e os produtores de doces conventuais tradicionais reagiram com surpresa e, em alguns casos, com indignação às conclusões dos estudos históricos. Em nota divulgada pela Arquidiocese de Braga, um porta-voz afirmou que “os doces conventuais fazem parte de nossa identidade cultural e espiritual, e qualquer alteração ou questionamento sobre sua autenticidade deve ser feito com respeito e rigor histórico”.
Produtores de doces como os de Tentúgal e Ovar, famosos por seus pastéis e pães de ló, também manifestaram seu desacordo. Segundo Ana Ramos, produtora de doces conventuais em Ovar, “nós seguimos à risca as receitas que foram passadas por gerações. O sabor, o cuidado no preparo e os ingredientes são mantidos de forma fiel, e essas especulações podem prejudicar o reconhecimento que essas iguarias têm tanto em Portugal como no exterior”.
Por outro lado, alguns produtores reconhecem que as receitas podem ter sofrido mudanças ao longo dos anos, mas defendem que essas alterações foram naturais e necessárias. “Os tempos mudam, os ingredientes mudam, e o paladar das pessoas também. É natural que as receitas sejam ajustadas”, afirma Miguel Rocha, proprietário de uma fábrica de doces em Coimbra.
O Debate Acadêmico
O debate sobre a autenticidade do receituário conventual gerou grande interesse entre acadêmicos e gastrônomos. Para a historiadora de arte Catarina Marques, “este é um momento importante para refletirmos sobre o que consideramos como ‘autêntico’. As tradições são vivas, elas mudam, se adaptam. Isso não significa que perdem sua essência”.
Entretanto, para outros, como o chef e investigador Paulo Machado, é essencial resgatar as receitas originais e diferenciá-las das versões adaptadas. “É uma questão de respeito à história e à gastronomia. Precisamos preservar as receitas em sua forma mais pura, e as versões que conhecemos hoje devem ser vistas como adaptações, não como autênticas”, opina Machado.
A Associação Portuguesa de Historiadores da Culinária planeja realizar um congresso em 2025, que incluirá painéis dedicados ao estudo da doçaria conventual. O evento deverá reunir especialistas de todo o país para discutir as descobertas recentes e analisar como essas informações podem impactar a preservação do patrimônio gastronômico português.